Sobre juventude, necessidades e sonhos[1]
Fernando Lima das Neves
Gostaria primeiramente de propor uma inversão no título de nosso debate, antepondo a palavra “necessidades” à palavra “sonhos”, ou seja, “Juventude: necessidades e sonhos”. Inversão esta que irá, de certa forma, pautar o norte das questões que trouxe para a nossa conversa de hoje. O tema proposto permite uma aproximação sobre um aspecto crucial que recai sobre boa parte dos jovens e das jovens Brasil afora: o descompasso entre a condição material e o engendramento de horizontes de referência minimamente positivos, que possibilitem o agir no mundo. E o conjunto de tragédias que tais jovens vão colecionando ao longo da vida imprime marcas tão profundas na auto-percepção, que mesmo a conjunção desses desalentos pessoais para a criação de um corpo mais denso de atuação política segue titubeando. Dito de outra maneira, nos termos de Pierre Bourdieu, verifica-se que “a insegurança objetiva funda uma insegurança subjetiva generalizada” (Contrafogos, p. 121).
Nesse sentido, com a precarização da vida, constatada, sobretudo, nas alterações processadas no mundo do trabalho, e a destruição desse horizonte de possibilidades, o que resta dos sonhos? Em que consistem as representações do futuro por parte dessas pessoas? Como circunscrever a alarmante “perda de sonhos”, a vida que se vive a cada dia, o embaralhamento entre o real e o imaginário, ou ainda a separação calculada e esquizofrênica entre objetividade e subjetividade? As imagens entorpecidas do universo de Kafka, como em O Processo , ou ainda o desenrolar da vida em Macondo, na obra máxima de Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, ilustram bem esses tempos nebulosos do capitalismo contemporâneo, onde o jogo das binaridades, as decisões tramadas nas mansões e hotéis e as dissimulações e covardias generalizadas parecem sonegar docemente os tributos aos “inúteis para o mundo”, na (in)feliz expressão de Robert Castel.
Uma pista importante para essas questões, no que concerne ao universo juvenil, pode estar configurada no enorme conjunto de debates, encontros, congressos, pesquisas, reportagens, artigos, livros, teses e dissertações, documentários e longas-metragens (dentre outros, Notícias de uma guerra particular – de João Moreira Salles e Kátia Lund –, Falcão – meninos do tráfico – de Celso Athayde e MV Bill –, Cidade de Deus – de Fernando Meirelles, O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas – de Paulo Caldas e Marcelo Luna, Antônia – de Tata Amaral, Ônibus 174 e o polêmico Tropa de Elite – ambos de José Padilha). Estão implicados nessa extensa e conflituosa produção artístico-cultural-intelectual em torno da categoria social “juventude” inúmeros atores e instituições, que englobam os mais variados pontos de vista, ou visões de mundo, ou seja, são perpetrados embates que se situam no campo teórico, ou no campo simbólico, com repercussões práticas, quando pensamos, por exemplo, as políticas públicas voltadas mais diretamente para a juventude. Esse exercício perene de acompanhar e esmiuçar o rearranjo histórico das categorias, que, por sua vez, interligam-se à específica configuração social e política mais ampla de determinada sociedade, constitui uma forte característica da literatura mais recente sobre juventude.
A polissemia da categoria “juventude” exige, portanto, a meu ver, a adoção de uma perspectiva pluralista que permita uma aproximação mais fidedigna das modulações que incidem sobre a condição juvenil. Dessa forma, aspectos como classe social, sexo, geração (as diferentes experiências de vida e a memória social incorporada) e a dinâmica dos círculos familiares convergem concomitantemente para a produção social e cultural do que se compreende por “juventude”. Essas clivagens todas, por sua vez, se vinculam objetivamente às diferenças materiais inerentes à sociedade capitalista, cujo robusto aparato de produção simbólica, ou ideológica, impõe como legítima e inevitável uma realidade econômica e social historicamente circunscrita, que se materializa nas leis, princípios e decisões que regem os rumos da vida humana. Soergueu-se, assim, num contínuo processo histórico, um mundo social que anula a possibilidade da emancipação humana. E nos diversos espaços sociais – periferias das grandes cidades, pequenas cidades, zona rural, etc. –, os problemas diários da juventude se exacerbam, observados no desemprego estrutural, violência, falta de acesso à escola, aos sistemas de saúde, à moradia, às atividades culturais e às muitas formas de lazer, inserção no crime organizado, imagens e percepções estereotipadas a seu respeito, etc.
Para ilustrar esse campo de disputas que tendem cada vez mais para a fratura social, trouxe uma música do Facção Central, grupo de rap de São Paulo, para nós apreciarmos.
Chico Xavier do gueto
“Prepare as algemas, forme o inquérito,
abra o processo que eles estão de volta,
sem freio na língua, sem meia verdade,
história engraçada e frase bonita.
Facção Central, Chico Xavier do Gueto,
Facção Central, Chico Xavier do Gueto,
pondo no papel o que Deus manda,
nos palcos da noite é a munição traçante.
O soldado que prefere ser morto
O soldado que prefere ser morto
do que ser o soldado que municia o inimigo.
Não é letra violenta não, cuzão,
Não é letra violenta não, cuzão,
é a música cantada com o coração.
Facção não faz rap pra você, boy, grupo invejoso, Zé povinho,
estamos cagando e andando pra opinião de vocês.
Extremista, célula terrorista, enquanto Deus por ar nos pulmões,
vamos ser o avião fazendo estrago de ouvido a ouvido.
Vitória não é carro, dinheiro e vagabunda.
Facção não faz rap pra você, boy, grupo invejoso, Zé povinho,
estamos cagando e andando pra opinião de vocês.
Extremista, célula terrorista, enquanto Deus por ar nos pulmões,
vamos ser o avião fazendo estrago de ouvido a ouvido.
Vitória não é carro, dinheiro e vagabunda.
É injetar ódio no cérebro do conformado,
informação no desinformado e auto-estima no derrotado.
Vive muito boy, não gosto de você, mas não quero seu sangue
derramado com as nossas mãos,
Vive muito boy, não gosto de você, mas não quero seu sangue
derramado com as nossas mãos,
não quero um dos meus vencendo através do seu cadáver.
Vive muito pra um dia ver a favela vencer.
Vive muito pra um dia ver a favela vencer.
Eu acredito muito nisso, pra quem tem fé e persistência tudo é possível.
Aí, tinha dois moleques lá no cortiço do centro,
Aí, tinha dois moleques lá no cortiço do centro,
que ninguém dava uma moeda e mesmo assim eles derrubaram as portas,
sobreviveram ao teste, às coronhadas da polícia, fome, e hoje,
acredite se quiser, tão aqui, tirando seu sono.
sobreviveram ao teste, às coronhadas da polícia, fome, e hoje,
acredite se quiser, tão aqui, tirando seu sono.
Passaram de quinta série de escolaridade a PhD em vida,
Eduardo e Dum Dum doença que contagia as almas sem voz,
certificado de atitude concedido pela favela.
Aí, desempregado, doente, órfão, faminto, mendigo, detento,
viciado, menor de rua, iludido ou sem ilusão,
Aí, desempregado, doente, órfão, faminto, mendigo, detento,
viciado, menor de rua, iludido ou sem ilusão,
não importa quem é você, se você tem periferia no peito,
você é parte de mais um capítulo da nossa história.
Direto do campo de extermínio”.
Direto do campo de extermínio”.
Quinto álbum do grupo de rap Facção Central (criado em 1989 na região central de São Paulo por jovens que cresceram em cortiços, que hoje são alvo da política de “Revitalização do Centro”, do governo PSDB-PFL/DEM), Direto do Campo de Extermínio (2002), incomoda de imediato os ouvidos menos insensíveis. A linguagem musical empregada representa, ou melhor, apresenta uma realidade não menos crua e direta para quem a vivencia. O aspecto subjacente a essa espécie de manifesto contra a violência policial, a miséria e as diferenças de classe são as necessidades materiais, ou a impossibilidade objetiva de satisfazer tais necessidades, relacionadas que estão também às exigências de consumo socialmente impostas e naturalizadas na vida cotidiana. Tal como observa Vera Telles, “qualquer um que circule pelos bairros das periferias mais pobres haverá de encontrar a parafernália do consumo moderno e pós-moderno, e haverá de encontrar o morador pobre desses lugares mais-do-que-pobres exibindo, junto com a fatura de uma dívida sempre adiada, as versões populares (ou nem tanto) dos cartões de crédito que também chegaram por lá: é a financeirização do popular fiado” (Rev. Tempo Social, 2006, p. 178).
Para deslindar essa realidade, gostaria de retomar aqui, com perdão das simplificações, um texto de Karl Marx, de 1844, os Manuscritos Econômico-Filosóficos, ou Manuscritos de Paris. Nesse texto (que só seria conhecido em 1932, quando foi lançado na URSS), o jovem Marx (tinha então 26 anos de idade) estabelece os fundamentos originais de seu pensamento, por formular a primeira aproximação crítica da economia política clássica (exposta, sobretudo, na obra de Adam Smith, J.-B. Say e David Ricardo), apontando os pressupostos da subjugação dos trabalhadores pelo capital, reduzidos que são à condição de mercadoria. Trata-se aqui de uma fundamentação meticulosa da defesa da emancipação humana, solapada pela tríade trabalho estranhado (que se intensifica com a divisão do trabalho) – troca (apropriação de excedente, ou mais-valia) – propriedade privada. E o trabalho compreende a mediação mais basilar entre ser humano e natureza, da qual emerge todo o processo de formação humana. A partir da esfera da produção, o trabalhador se mantém, ou seja, satisfaz suas necessidades, ou carências. E tais necessidades, ou carências, (materiais ou abstratas/espirituais) são criadas e recriadas num movimento incessante. Vejamos uma citação da penúltima parte dos Manuscritos em que Marx discute exatamente essa questão:
Como o aumento das carências e dos seus meios engendra a falta de carências e a falta de meios, demonstra-o o economista nacional (e o capitalista, falamos em geral sempre dos homens de negócio empíricos quando nos dirigimos aos economistas nacionais – seu testemunho científico e existência) 1) na medida em que ele reduz a carência do trabalhador à mais necessária e mais miserável subsistência da vida física e sua atividade ao movimento mecânico mais abstrato; ele diz, portanto: o homem não tem nenhuma outra carência, nem de atividade, nem de fruição; pois ele proclama também esta vida como vida e existência humanas; na medida em que 2) ele calcula a vida (existência) mais escassa possível como norma e, precisamente, como norma universal: universal porque vigente para a massa dos homens; ele faz do trabalhador um ser insensível e sem carências, assim como faz de sua atividade uma pura abstração de toda atividade; cada luxo do trabalhador aparece a ele, portanto, como reprovável e tudo o que ultrapassa a mais abstrata de todas as carências – seja como fruição ou externação de atividade – aparece a ele como luxo. A economia nacional, esta ciência da riqueza é, por isso, ao mesmo tempo, ciência do renunciar, da indigência, da poupança e ela chega efetivamente a poupar ao homem a carência de ar puro ou de movimento físico. Esta ciência da indústria maravilhosa é, simultaneamente, a ciência da ascese e seu verdadeiro ideal é o avarento ascético, mas usurário, e o escravo ascético, mas producente. O seu ideal moral é o trabalhador que leva uma parte de seu salário à caixa econômica, e ela encontrou mesmo para esta sua idéia predileta uma arte servil. Levou-se o sentimental[ismo] para o teatro. Por isso, ela é – apesar de seu aspecto mundano e voluptuoso – uma ciência efetivamente moral, a mais moral de todas as ciências. A auto-renúncia, a renúncia à vida, a todas as carências humanas, é a sua tese principal. Quanto menos comeres, beberes, comprares livros, fores ao teatro, ao baile, ao restaurante, pensares, amares, teorizares, cantares, pintares, esgrimires etc., tanto mais tu poupas, tanto maior se tornará o teu tesouro, que nem as traças nem o roubo corroem, teu capital. Quanto menos tu fores, quanto menos externares a tua vida, tanto mais tens, tanto maior é a tua vida exteriorizada, tanto mais acumulas da tua essência estranhada. Tudo o que o economista nacional te arranca de vida e de humanidade, ele te supre em dinheiro e riqueza. E tudo aquilo que tu não podes, pode o teu dinheiro: ele pode comer, beber, ir ao baile, ao teatro, sabe de arte, de erudição, de raridades históricas, de poder político, pode viajar, pode apropriar-se disso tudo para ti; pode comprar tudo isso; ele é a verdadeira capacidade. Mas ele, que é tudo isso, não deseja senão criar-se a si próprio, comprar a si próprio, pois tudo o mais é, sim, seu servo, e se eu tenho o senhor, tenho o servo e não necessito do seu servo. Todas as paixões e toda atividade têm, portanto, de naufragar na cobiça. Ao trabalhador só é permitido ter tanto para que queira viver, e só é permitido querer viver para ter. (Ed. Boitempo, p. 141-142)
A obra de Marx prossegue incomodando as mentes mais esclarecidas justamente por descortinar os mecanismos sutis, diretos ou indiretos, mais, ou menos, acentuados da degradação da vida humana. Como vemos, apesar de escrito em meados do século XIX, o texto permanece demonstrando, mesmo com as devidas ressalvas e com os aprimoramentos da exploração da mão-de-obra, as sutilezas, os percalços e as contradições num mundo cada vez mais integrado pela financeirização do capital e internacionalização da miséria. Destaco rapidamente um aspecto dessa longa citação, à luz de nossos tempos. No caso, a redução das carências à mera subsistência, ou seja, a escassez da vida humana se torna a norma, já que generalizada para o conjunto dos trabalhadores. As propaladas “somas vultosas” aplicadas no Bolsa Família (R$ 8,3 bilhões previstos para esse ano) nos diz muito a esse respeito. Trago aqui um artigo de Francisco de Oliveira, na revista Piauí de janeiro de 2007, em que faz uma avaliação da segunda eleição de Lula, apontando os possíveis rumos do Brasil. Na esteira de Gramsci, lança a idéia de uma “Hegemonia às avessas”, ou seja, “enquanto as classes dominadas tomam a ‘direção moral’ da sociedade, a dominação burguesa se faz mais descarada”. A comparação é com o fim do regime de apartheid na África, que não representou “a desenfreada exploração pelo capitalismo mais impiedoso” e o crescimento cada vez mais acentuado de suas favelas. No Brasil, a eleição de Lula e a criação do Bolsa Família seria uma espécie de derrota do apartheid brasileiro. Além disso, a eleição de Lula teria decretado o fim do preconceito de classe, e destruídas as desigualdades. O resultado de tal movimento, como prevê o sociólogo, é uma situação ambígua e razoavelmente inusitada, pois “não são mais os dominados quem consentem na sua própria exploração (como vimos no trabalho estranhado). São os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos, à condição de que a ‘direção moral’ não questione a forma da exploração capitalista”.
Como na expressão “PhD. Em vida”, que vimos no Facção Central, o que se verifica é o predomínio do “selo do aleatório”, para usar outra expressão de Robert Castel, ou seja, a deterioração das biografias sob o signo do presente. Mas, se o presente lhes é negado, como constituir uma noção de futuro? E, como vimos, não mais a agora restrita exploração do trabalho nos moldes, por assim dizer, “clássicos”, das linhas de produção e do chão da fábrica, segue exprimindo bem essa fragilidade, mas as mutações do trabalho decorrentes da chamada reestruturação produtiva e a globalização da economia engendram novas relações sociais, novas formas de sociabilidade. Por exemplo, o trabalho abstrato que transforma as mais absurdas atividades cotidianas em sobrevalor, associado às aporias da questão social brasileira e ao processo permanente de destituição de direitos historicamente conquistados (como as tentativas recentes de flexibilização das leis trabalhistas pelo governo federal) são as facetas mais modernas dessas mutações todas.
Uma aposta que podemos fazer, junto com Pierre Bourdieu, é a da desconstrução da ordem simbólica do mundo, de destrinçar os pormenores das disputas em torno do predomínio de uma visão de mundo. Trago à baila alguns exemplos que me chamaram a atenção nos últimos tempos. Primeiro, a proibição de veiculação em todo território nacional do videoclipe “Isso é uma guerra” (dirigido por Dino Dragone), também do grupo Facção Central. A fita foi recolhida pela polícia na MTV, logo após sua primeira exibição. Um promotor de São Paulo solicitou a punição dos responsáveis pelo que qualificou de “delito de incitação ao crime”. Até a direção da MTV foi processada por permitir a veiculação do videoclipe. A pena seria de um mês a um ano de cadeia para integrantes da banda e diretor do videoclipe. O promotor tomou conhecimento do assunto por uma denúncia do jornal O Globo. Em entrevista à revista “Isto É”, ele afirmou que “o grupo prega uma luta de classes primitiva. O casamento da letra com as imagens resulta em um filme de horror absurdo”. Ao assistirmos o videoclipe, percebe-se que, apesar das imagens violentas, no final, os bandidos têm uma morte ainda mais violenta. Dias depois, o videoclipe já estava disponível na internet... O embate em torno da “imagem” camufla um conjunto de elementos concretos, que colocam em suspensão a ação moral do promotor. O que dizer das demais imagens violentas que observamos diariamente em certos programas jornalísticos? O que dizer do espetáculo armado durante o seqüestro do ônibus 174 pelo ex-menino de rua, sobrevivente da chacina da Candelária, Sandro do Nascimento (21 anos à época), morto pela polícia em seguida?
Outro exemplo, conforme notícia da Folha On-line, de 16 de agosto de 2007, a partir de uma reportagem da BBC de Londres, a enciclopédia virtual Wikipédia, que é escrita e modificada livremente pelos próprios usuários, tem entre seus freqüentadores mais assíduos a CIA (agência de inteligência norte-americana) e o Vaticano. A revelação tinha como base dados do Wikipédia Scanner, programa encarregado de monitorar sobre como e por quem as informações on-line são modificadas. Em particular, dentro do universo da Wikipédia, foi de interesse do Vaticano mexer no conteúdo do verbete sobre o Sinn Fein, movimento de independência irlandês, enquanto para a CIA o foco foi a mudança do perfil do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad. O instrumento de controle, elaborado por pesquisadores americanos, consegue apontar mais de 5 milhões de intervenções na enciclopédia on-line e os endereços de IP de cada computador de onde partem as alterações. No dia seguinte, a Santa Sé já estava pronta para negar todas as revelações, afirmando que as alterações na ficha de Gerry Adams, diretor do partido norte-irlandês, não tinham nada a ver com o Vaticano. A CIA não comentou as declarações.
Outro fato mais recente, que passou praticamente despercebido, foram os embates em torno da renovação das concessões públicas de várias emissoras privadas de TV no Brasil, inclusive as mais importantes da Rede Globo (as filiais de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Belo Horizonte). Diferentemente do que ocorreu na Venezuela, quando o governo Hugo Chávez se recusou a renovar a concessão da principal emissora do país, a RCTV, que havia participado do golpe de Estado contra ele em 2002 (episódios do qual resultou o documentário A revolução não será televisionada, dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain). Da mesma forma, nossa emissora-mor participou diretamente de ao menos dois golpes: o de 64 e o da campanha presidencial de 1989. Não obstante, sua pujança em manter uma determinada ordem simbólica segue inquebrantável. Também a capa da revista Veja da semana passada estampava jocosamente a figura de Che Guevara (ontem, dia 09, completaram-se 40 anos da morte do guerrilheiro cubano, fuzilado na Bolívia). E a Revista Veja, como qualquer outra empresa midiática mais poderosa, é exatamente o substrato das disputas simbólicas, da produção de idéias que interferem na produção do mundo real.
Marx e Engels talvez inauguraram essa atividade de desconstrução das “aparências” em obras seminais como A Sagrada Família, A ideologia alemã e O Capital (obra máxima de desvendamento da lógica perversa de apropriação da riqueza socialmente produzida). Vemos que a tarefa de desconstrução da ordem simbólica é árdua. Por isso, entendo que as produções culturais, nas suas diversas linguagens, como o próprio rap, têm muito que contribuir com essa empreitada hercúlea.
A passagem para os sonhos nesse contexto não é menos cinza, opaca, intransparente. Vejamos alguns sonhos recolhidos em entrevistas, durante pesquisa em 2005.
JOSIANE
O que você sonha para os próximos anos?
- Meus sonhos... Eu acho que é formar, conseguir um serviço, e... acima de tudo ser feliz, como diz o Pe. Moacir a gente nasceu pra ser feliz, mais na frente casar, construir uma família.
CECÍLIA
E quais são seus sonhos?
- Eu não sou muito de sonhar não, eu sou mais realista, eu gosto da coisa mais viva, mais na hora. Porque esse negócio de ficar planejando o futuro, isso não pertence a nós, quem planeja o futuro pra gente é Deus, a gente não sabe o que que vai acontecer. Eu sou assim, eu espero acontecer. Tá certo, eu busco as coisas, eu vou atrás, eu tento reverter uma situação, mas quando não dá eu deixo nas mãos de Deus, porque só ele que sabe...
PEDRO
O que você imagina pra sua vida nos próximos anos?
- Eu imagino ser alguém na vida algum dia, né cara. Nem que seja pelo estudo, seja pelo trabalho mesmo. Igual, eu sou muito envocado [envolvido, gostar de] em garimpo, eu vou tentar subir na vida, ser alguém na vida.
E hoje você é quem, então?
- Não quer dizer que eu não sou ninguém, quer dizer uma situação financeira assim, ser um doutor algum dia, um médico, ou ser alguma coisa de aparência na cidade.
Quais são seus sonhos?
- Ah, eu sonho muitas coisas, meu [sorriso]. Igual muitas vezes alguns colegas meus que chegam aí de carro, e isso e aquilo. Eu sonho demais... Se eu for te contar o tanto de sonhos que eu tenho na vida. Não, eu sonho em ter uma casa boa, em ter um carro. Não sonho nada de ruim, só coisas boas.
ANGÉLICA
E o que você sonha pra sua vida?
- Ah... Do jeito que está, pelo que eu estou passando, acho que não dá nem pra sonhar... [emociona-se] Eu não sonho com nada mais, eu deixo ir levando até ver onde é que vai parar... Se você ficar sonhando com alguma coisa... Eu já sonhei demais... [pausa]
E o que você sonha, o que você espera pra sua vida, além disso?
- Pretendo terminar meus estudos, formar uma família. Eu quero ter uma família. Não por agora, porque as condições não ajudam, mas um dia, se Deus quiser, eu ainda vou ter uma família. Porque um homem pra ter alguma coisa na vida tem que ter uma família, pra construir alguma coisa. Você tem a mulher que pode ajudar você em tudo que você precisar, apóia você nas coisas certas e erradas, está pra o que der e vier junto de você. Você sozinho qualquer tanto que você pega, só gasta, não segura; agora, você tendo uma família não, você fala “oh, vai ter que comprar um óleo, o leite da criança”.
A pesquisa consistiu na análise dos vínculos entre o indivíduo e o contexto social mais imediato, as redes de interdependência, em uma pequena cidade situada no oeste de Goiás, atentando-nos sempre para as diferentes clivagens na estrutura social, os padrões valorativos preponderantes, as imagens criadas e recriadas acerca da cidadezinha e a fruição das práticas políticas e culturais da juventude. A partir dessas referências, a projeção de si se anula ou se reduz, o “eu” reduzido às vicissitudes do presente, aspecto intensificado pela dificuldade de inserção na esfera produtiva. E esse é o único meio objetivo através do qual a vivência nesse presente se torna possível. Daí haver um descompasso entre o presente desejado e buscado, e as possibilidades objetivas de concretizá-lo. Se os sonhos alheios preocupam tanto o pesquisador, é porque os sonhos estão sendo construídos dentro da lógica das permanentes desigualdades sociais. Como se percebe, o drama existencial se acentua conforme as particularidades de cada pessoa. As visões extremamente negativas, o desespero de si, o pragmatismo e aleatoriedade das coisas, alguns traços de resignação e os variegados discursos e práticas efetivas de ruptura com o estatuto de “ninguém” são parte das amplas variações individuais das percepções de si e do contexto sócio-econômico mais amplo. Malgrado o dilaceramento do habitus, a negação da realidade em que vivem e o desconsolo advindo da ausência generalizada de trabalho, não cabe aqui a fixação total em tais perdas, dificuldades e sofrimentos, mas devem ser enfatizadas também as possibilidades de ação efetiva, as estratégias criadas para enfrentar os dilemas da vida e programar uma disputa constante com tudo aquilo que é “considerado assim porque sempre foi assim”, de desfigurar, enfim, a “experiência da impotência” e reconhecerem-se e serem reconhecidos no espaço público.
A presença de organizações de juventude pode ser observada em muitos níveis de atuação social e política. Da campanha pelas eleições diretas, passando pelo impeachment de Collor e mais recentemente nas novas formas de organização dos diversos grupos, institucionalizados ou não, tais como a Pastoral da Juventude do Brasil ligada à Igreja Católica, o Movimento Hip-Hop, os jovens sem-terra, grupos de bairros pobres das grandes cidades, com suas atividades esportivas e artísticas, pessoas inseridas nos movimentos de direitos humanos, educadores e tantas outras que em diversos recantos do país promovem ações com visibilidade e poder de atuação, elaboradas com criatividade e cujo impacto ainda está para ser mais amplamente avaliado. Para além da permanência nas limitações, apropriações e manipulações diversas de cada um desses eventos e práticas historicamente situados, a ênfase aqui é nas organizações diversificadas da juventude que, apesar de todas as especificidades têm comunicado entre si e realizado, na medida do possível, atividades múltiplas que dão respaldo à importância dessa categoria social na constituição da sociedade civil.
A necessidade de repensar o conceito de presente, atrelado à vida cotidiana, de maneira a torná-lo uma referência crucial para os “horizontes temporais contemporâneos” se assenta exatamente no pressuposto de perceber, ao longo dos anos, a conformação “estruturas de sentimentos” que dão uma moldura específica para as ações individuais ou coletivas. A singularidade dessas inserções juvenis nesse universo social de desigualdade naturalizada funda-se, dentre muitos outros fatores, no seu processo inicial de constituição autônoma da vida, na busca da inserção no sistema produtivo, no dilema entre a busca de formação e de provimento das necessidades materiais mais imediatas. Essa fragilidade é ainda reforçada pelos inúmeros mecanismos gerais de disciplina e controle que perpassam a vida dessas pessoas, como vemos nos estudos do filósofo Michel Foucault. Não obstante, observam-se também estas buscas constantes de elaboração de formas discursivas, apesar das limitações e da disparidade de acesso aos canais de comunicação.
A inserção no espaço público, o lugar por excelência da política, talvez seja a única forma de engendrarmos caminhos alternativos. Se “o provisório se tornou um regime permanente”, ou a “exceção agora é a regra”, resta uma postura reflexivamente “crítica” e permanentemente articulada. Como nos mostra, já em 1990, o bombástico artigo de Giles Deleuze (Conversações), “o homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas”. Resta doravante, como também nos antecipa Giles Deleuze, “(...) compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. (...) Muitos jovens pedem estranhamente para serem ‘motivados’, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas”. Também aqui, as relações entre o mundo material e o mundo simbólico nos colocam questões que permanecem nos colocando para pensar. E, como vimos, a imbricação entre necessidades e sonhos, ou melhor, os sonhos canalizados para a satisfação imediata das necessidades, anula, em muitos casos, uma perspectiva que propicie uma visão mais ampla sobre a totalidade de todas essas contradições. Desvendar esses meandros é tarefa crucial e ainda por fazer.
[1] Texto apresentado no ciclo de debates da Casa da Juventude, conforme o tema proposto “Juventude: necessidades e sonhos” (Goiânia, 10 de outubro de 2007).
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